Resenha: Deus contra todos
- F. S. Lawliet
- 23 de jan. de 2018
- 5 min de leitura

A vida de Werner Herzog fez com que ele detestasse música durante grande parcela de sua juventude. Aos seus 12 anos, foi aconselhado a cantar diante de sua classe. Ele se recusou, quase foi expulso por isso e, na mesma época em que já havia se decidido que se tornaria um diretor de cinema, também decidiu que não ouviria música alguma, nem tampouco estudar ou tocar qualquer instrumento que fosse. Esse juramento duraria por volta de seis anos. Mais tarde na vida, Herzog declararia que daria 10 anos de sua vida para ser capaz de tocar alguma coisa. Afinal, a música, que como qualquer formato de linguagem serve para a transmissão e troca de sentidos entre interlocutores e para firmar significados em acontecimentos, está presente de um modo especial em Jeder für sich und Gott gegen alle (O Enigma de Kasper Hauser), de 1974, com uma identidade sonora própria da época retratada, mas que, unida à maneira com a qual a narrativa flui, faz com que o público sinta uma conexão com a trama vivida pelo protagonista e experimente sentimentos diversos com cenas que possuem envolvimento entre personagens que vão além do diálogo, além da reprodução de acontecimentos, e além da linguagem como um marcador temporal de fatos.
O filme é baseado na história real de Kasper Hauser, um rapaz que foi criado no interior de uma torre e completamente isolado da sociedade, sendo seu único contato humano um tutor que conseguiu lhe ensinar a pronúncia de pouquíssimas palavras e lhe dava pão e água para se alimentar. Quando completa 18 anos, Kasper Hauser recebe de seu tutor uma carta explicando quem era e uma frase para repetir, indicando assim a quem ele deveria falar, e é então levado para uma aldeia alemã, onde é abandonado pelo seu tutor no meio de uma praça. Ele fica lá, imóvel como uma estátua, até que por iniciativa de um dos camponeses, que consegue leva-lo até o destinatário da carta, é que Kasper Hauser é introduzido na sociedade que se vê diante do desafio de descobrir o que fazer com ele.
Assim como Herzog teve sua relação de altos e baixos com a música, Kasper Hauser vive uma experiência igualmente complicada com a linguagem. Ao chegar, ele sabe pouquíssimas palavras, não aprendeu nenhum tipo de postura, nobre ou camponesa, mal sabe andar, não consegue comer nada além de pão e água e não reage a nenhum estímulo emocional externo. Não consegue reter muitas memórias que não sejam instintivas ou de algum reflexo adquirido, e não consegue sonhar. Assim, não sabe dizer quem é, de onde veio e o que lhe aconteceu. Por si só, Kasper Hauser (cujo nome foi dito por ele, mas soa tão decorado quanto o resto) se apresenta como um enigma não apenas para a sociedade lidar, mas para si mesmo para ignorar com sua aparente simplória indiferença.
Nesse meio tempo, os oficiais que examinam tanto Kasper Hauser quanto seus pertences têm algumas pistas de uma possível origem nobre, mas sem nenhum meio de ter certeza absoluta. Essa cena do escrutínio é uma das mais emblemáticas do filme, pois percebe-se claramente que ali está se definindo à força quem é Kasper Hauser a partir de observações que são registradas por um escrivão (personagem importante, esse escrivão, logo voltaremos a ele), sem qualquer participação ou consentimento seu. Assim, é arrastado pra lá e pra cá por pessoas de todas as classes e com as mais variadas intenções, aos quais ele não impõe resistência, mas apenas apresenta reações normais do seu corpo.
Nesse sentido, Kasper Hauser apresenta uma versão moderna e problemática do Mito da Caverna de Platão. As cores das paredes do cômodo onde ele ficava na torre até mesmo lembram o interior de um buraco cavucado na terra. E ele não é libertado, se não arbitrariamente solto, de sua caverna inicial para passar, não para o exterior idealizado da iluminação, mas para toda uma sorte de cavernas maiores e mais sofisticadas em seus meios de manter seus ocupantes distraídos e presos em seu interior. De fato, essa decepção é explícita em vários momentos em Kasper Hauser quando este se vê infeliz com seus arredores, quando diz que o lugar onde estava inicialmente preso era muito melhor do que o lugar onde se encontra agora. E depois, quando já está bem avançado em seu domínio da linguagem da aldeia e da sociedade, e retorna para visitar a torre, ele explica que era impossível que aquele fosse o lugar em que vivera preso por tanto tempo, pois se lembra de como era o espaço quando olhava para todas as direções, e que só conseguira ver a torre quando olhava para uma só.
A maneira extremamente singular com a qual Kasper Hauser experimenta o mundo e a forma com que ele consegue externaliza-la mais tarde no filme revelam um conflito interno que, assim como a origem desse personagem, não conseguimos precisar ao certo o momento em que se formou. Pode ser que ele já tivesse essas dúvidas acerca de liberdade, compromissos, papéis sociais e vivências antes que pudesse expor ditas dúvidas a partir da linguagem aprendida através das diferentes “cavernas”, ou níveis sociais, que Kasper Hauser convive. Ou também pode ser que o próprio aprendizado desta linguagem tenha feito as dúvidas surgirem a partir de vivências que ele antes não tinha como entender. De uma forma ou de outra, o personagem adquire um caráter subversivo quando, convivendo com toda a sorte de normas e conhecimentos sociais que todos ao seu redor seguem e defendem como moralmente correto, ele as questiona meramente por existir como si mesmo, e revela as fragilidades e os pontos que essas normas e conhecimentos não alcançam, contemplam ou simplesmente falham em explicar.
E, enquanto a figura de Kasper Hauser coloca as morais sociais em questionamento simplesmente por estar presente e enxergar tudo de uma forma singular, o personagem do escrivão age quase completamente como sua antítese. Ele surge em diversos momentos em que figurões sociais surgem para entender Kasper Hauser para tomar nota e registrar tudo, quase como uma sombra parasitária de sua vida. Ele reforça de novo e de novo a presença da linguagem como algo definidor de acontecimentos, quando revisa sempre a maneira certa com que as palavras ditas pelas autoridades sobre Kasper Hauser devem ser registradas. Ele também é o único personagem no filme que de fato diz que Hauser é um enigma, e que será ele quem o desvendará. Tais afirmações tem um peso a mais quando percebemos que, no mundo retratado por esse filme, a única maneira oficial e “confiável” de se descobrir quem foi Kasper Hauser será, de uma forma ou de outra, a partir dos registros desse escrivão.
Jeder für sich und Gott gegen alle instiga a repensarmos a estrutura criada por nós que não apenas nos define como sociedade ou como uma comunidade organizada, mas também como seres humanos. A presença de um humano que se comporta, age e existe de maneira díspar ao que estamos acostumados de nossos semelhantes força a reflexão de que serão mesmo nossos hábitos culturais e sociais que nos definem como pessoas cujas vidas tem valor. Reflexão esta que foi vivenciada durante toda a existência de Kasper Hauser, e da qual o resto da sociedade se anestesia. Pois, uma vez que estes véus se vão e as falhas da existência trazem o questionamento do que significa existir, é cada um por si e Deus contra todos.
O Enigma de Kasper Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle - 1974)
Diretor: Werner Herzog
Roteirista: Werner Herzog e Jakob Wassermann
Elenco:
Bruno S. (Kaspar Hauser) Walter Ladengast (Professor Daumer) Brigitte Mira (Kathe, Servente) Willy Semmelrogge (Diretor do circo) Michael Kroecher (Lorde Stanhope) Hans Musäus (Homem desconhecido) Henry van Lyck (Capitão da cavalaria) Gloria Doer (Frau Hiltel) Volker Prechtel (Hiltel, o guarda da prisão) Clemens Scheitz (Escriba)
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