Resenha: mother! (2017)
- F. S. Lawliet
- 26 de jan. de 2018
- 5 min de leitura

Darren Aronofski é um dos poucos cineastas atuais que vive em uma linha tênue entre a fama e a infâmia. mãe! (mother!) é seu mais recente filme e a mais recente prova desta dualidade, também observada nas inúmeras controvérsias cercando seus filmes mais famosos, como Requiém para um sonho (Requiem for a Dream, 2000), Cisne Negro (Black Swan, 2010) e Noé (Noah, 2014). Em todos estes filmes é observada uma tendência quase surrealista de provocar respostas emocionais tão intensas e tão íntimas à nossa percepção enquanto sociedade, que chegamos a tomar os filmes como perturbadores e desconfortáveis de assistir por causa disso.
mãe! mantém esta tradição. Possuindo uma narrativa que quebra regras do verossímil e que, por conta disso, nos atinge com força e nos perturba, o filme é difícil de assistir. Foram após muitas interrupções e pausas que consegui chegar aos créditos ao som de The End of the World, de Skeeter Davis, e com certeza não foi porque o filme era ruim, ao contrário do que uma parcela considerável da crítica defende. No entanto, no que pode ser considerado como um recurso pós-moderno de marketing que talvez tenha dado horrivelmente errado (ou horrivelmente certo), a sinopse do filme faz um desserviço à sua real fábula. Afinal, segundo a sinopse, o filme é sobre um casal interpretado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem que passam por maus bocados, cada um mais sério que o outro, por conta de visitas inesperadas que parecem nunca pararem de chegar à sua casa.
Entretanto, o filme é um retrato metafórico sobre o ato, ou o hábito, de criar. E não apenas isso, mas também com as possíveis reações em contato com o algo criado. Nesse sentido, os diversos paralelos bíblicos se fazem claros; o criador/o poeta (Javier Bardem) re-cria a casa e sua esposa (Jennifer Lawrence) surge ao mesmo tempo; os primeiros hóspedes remetem a Adão e Eva, levando em conta o ferimento que o homem tem em uma das costelas e a curiosidade da mulher que leva à quebra de um objeto muito estimado para o personagem de Bardem, que os expulsa de seu estúdio e o sela; o filho dos primeiros hóspedes que mata seu irmão e é marcado na testa logo depois; a casa cheia de gente que é esvaziada após uma imundação na cozinha, causada por duas pessoas quebrando a pia; o nascimento e a glorificação do filho do poeta e sua canibalização como forma de adoração; e, por fim, a destruição da casa em caráter cíclico, ou seja, terminando o filme exatamente como começou.
Embora esses paralelos estejam claros no filme, que permite uma ampla gama polissêmica, quando consideramos que não se trata de uma história bíblica explícita, mas sim de uma metáfora da criação e suas consequências, podemos enxergar os personagens de uma maneira nova. Por exemplo, a mãe (Jennifer Lawrence) representa uma definição de Foucault que Flávio Carneiro traz no texto Breve passeio pelos bosques da leitura como a função autor, ou seja, as formas próprias do discurso da obra trazidas à tona pelo apagamento do autor concreto, que aqui é representado pelo personagem de Bardem. Esse apagamento é notado de imediato; após a mãe acordar pela primeira vez e se encontrar com o poeta, este já se mostra desinteressado nela, se distanciando e procurando por uma inspiração perdida. O apagamento do autor também justifica a íntima conexão entre a mãe e a obra (representada pela casa). Ambas coexistem e nenhuma poderia sobreviver sem a outra, retratado em como a mãe nunca é vista fora da casa e em como esta parece reagir em sincronia a todos os mal-estares que a mãe sofre.
Os hóspedes, por sua vez, correspondem a leitores concretos da obra, cuja interpretação foge completamente ao que é esperado pela mãe. Ou seja, o leitor-modelo (conceito também trazido pelo Flávio Carneiro que diz respeito ao tipo de leitor que a função autor espera que leia sua obra e a compreenda) e os leitores que de fato aparecem e interagem com a casa são completamente diferentes. E a mãe sempre reage a estas atitudes inesperadas dos leitores com desconforto visível e crescente na medida em que o número de hóspedes aumenta; de surpresa educada e contida a pura raiva e desespero. Nesse sentido, o número de hóspedes influencia na liberdade que eles têm enquanto leitores de apreender a obra; quanto maior o número de pessoas dentro da casa, mais elas se sentem à vontade para fazer o que quiserem ali, testando todos os limites lugar e até mesmo a quebra-lo por completo, assim como um número grande de leitores que interpretam uma obra, por vezes de maneira particular e até errada, podem perverter completamente seu sentido original. Aqui o paralelo não é necessariamente para com as histórias da Bíblia, mas sim com as interpretações feitas a partir de sua leitura através dos tempos, e os conflitos que estas, por sua vez, geraram. Em outras palavras, saindo um pouco de Bíblia, os leitores podem chegar a atribuir de maneira genuína a autoria de poesias a alguém que nunca escreveu poesia.
Por fim, trago à tona ainda dois pontos do filme, e um deles é o relacionamento entre o poeta e a mãe. Ele parece estar sempre trocando de atitude com ela, ora sendo atencioso, ora a ignorando completamente em favor dos hóspedes. Ela, por sua vez, sofre com a falta que sente dele (em conjunto com as atitudes das visitas) e tenta sempre suprir as necessidades de todos da melhor maneira possível, desde que não desrespeitem a casa. O relacionamento entre os dois é trabalhado de maneira bastante interessante pois, para o poeta, nunca basta a auto-realização consigo mesmo pela obra criada (o que seria simbolizado no filme por uma boa relação entre o poeta e a mãe), mas sim o reconhecimento de terceiros, dos incautos leitores que vão parar ali por acaso. E a função autor se desdobra como pode para manter os limites da obra salvos de uma caoticamente livre e potencialmente destrutiva interpretação dos leitores.
O outro ponto é o caráter aparentemente metafísico da casa em si. O lugar parece infinito; são tantos cômodos, quartos e corredores que conhecemos junto com a mãe quando esta os percorre que fica muito difícil manter a memória de todos, salvo talvez o quarto do casal, o quarto do bebê, o estúdio e o porão. Nesse sentido a casa lembra um pouco a biblioteca do conto de Jorge Luís Borges, chamado La Biblioteca de Babel, que retrata a busca em vão de um bibliotecário em conhecer e, pior, conceituar uma biblioteca infinita. Embora no conto a biblioteca represente o conhecimento humano, tanto ela quanto a casa acabaram como palco de conflitos travados entre aqueles com teorias ou interpretações diferentes sobre o que significava aquele espaço no qual se encontravam, sem se darem conta de sua distância tanto da infinitude do conhecimento quanto da infinitude de possibilidades de interpretações possibilitada dentro dos limites da obra.
mãe! é, portanto, um filme denso que não deve ser assistido levianamente ou com o objetivo de apenas passar o tempo com algum entretenimento. Ignorando toda a polarização em sua recepção e as descrições deceptivas de pôsteres e sinopses, o filme pode ser uma das experiências mais espantosas de 2017, que nos faz refletir sobre nossas atitudes, tanto como autores quanto leitores, ao interagir com qualquer coisa que tenha sido criada tanto por nós mesmos ou por outras pessoas. Seja um ambicioso longa-metragem, seja um post no Facebook com uma poesia de autoria duvidosa.
mãe! (mother! - 2017)
Diretor: Darren Aronofsky
Roteirista: Darren Aronofsky
Elenco:
Jennifer Lawrence (Mãe) Javier Bardem (Ele) Michelle Pfeiffer (Mulher) Ed Harris (Homem)
Fontes:
Breve passeio pelos bosques da leitura, de Flávio Carneiro; A Biblioteca de Babel (no original, La biblioteca de Babel), de Jorge Luis Borges.
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